O projeto da Google para criar uma rede sem fios

O projeto consiste numa tentativa de reduzir o papel das operadores, fazendo com que a informação passe diretamente da fonte para o utilizador. É um processo de remoção de intermediários análogo ao que faz a Uber.

Desde que saíram as notícias de que a Google está a planear disponibilizar um serviço sem fios que tenho estado muito intrigado. As últimas informações de que o sistema da Google vai escolher um tipo de rede de aplicação-por-aplicação foram evidentes para mim. A empresa está a fazer um pequeno teste, com um âmbito limitado, apenas para um telefone vagamente utilizado… que poderá transformar totalmente a indústria sem fios. E se este não for já um grande negócio, assim será a rede sem fios na próxima década, e por conseguinte, lá se vai a internet.

Detesto comparações do tipo “É o X do Y”, mas não consigo pensar numa maneira melhor para descrever o modelo da Google como “É como o Uber mas para a rede sem fios.”

Esqueçam os táxis, a interrupção, as valorizações loucas e os lapsos éticos. O ponto mais forte da Uber é a forma como uma aplicação para o telemóvel, apoiado por elaboradas análises de dados, reestrutura o mundo físico. É só tocar no telemóvel, aparece um carro e no fim do mês há uma conta para pagar no seu cartão de crédito. Matt Cohler foi quem captou melhor isto, graças ao seu conceito de uma aplicação para telemóveis como controlo remoto para a sua vida. É por isso que Tim O’Reilly apelidou muito percetivamente a Uber como um exemplo a seguir da Internet das Coisas: os carros tornam-se dispositivos interligados e os telemóveis sensores. Ora aí está uma grande oportunidade.

Se for bem feito, este modelo de “indústria como serviço” traz experiências mágicas aos utilizadores, ao mesmo tempo que remodela o valor das cadeias de vários setores empresariais. Pense na forma como o iTunes serviu de ponto pivot que colocou a Apple no caminho para riquezas inimagináveis (e inversamente, o que fez à indústria da música). E tudo isso antes da imensa escala e velocidade do ecossistema móvel dos dias de hoje.

O desafio que a Google e todas as empresas que estão no topo da Internet vivem é não poderem controlar a infraestrutura física para os utilizadores finais. Estão dependentes de operadoras de rede. Essas operadoras têm modelos empresariais diferentes, culturas diferentes e ideias diferentes sobre quem deve extrair a maior parte do valor desse ecossistema. Daí a empresa titânica estar a lutar pela neutralidade das redes, por exemplo.

A Google e os outros principais fornecedores de serviços conseguiram remover uma fonte de controlo dos operadores, ao criar os seus próprios centros de dados e conectá-los a sistemas de nuvem, a partir de ligações privadas. Essencialmente, construíram aquilo que os cientistas dos anos 60 visionaram como sendo o futuro da indústria das comunicações – a “utilidade computacional” – antes das próprias operadoras.

O problema é que mesmo com os vastos recursos e capacidade da fibra escura, a Google não tem controlo sobre a última secção. De facto, as despesas de capital necessárias para ligar todas as casas da América foram uma das poucas coisas que até a própria Apple não se pôde dar ao luxo de fazer, mesmo com o seu poder monetário absurdo. (Em 2010, a FCC [Comissão Federal de Comunicações nos E.U.A.] atribuiu o preço de $300 mil milhões para ligação de uma rede de fibra nacional.) As redes sem fios envolvem despesas semelhantes para as licenças e torres. Mais preocupante ainda para as empresas de tecnologia e que as fazem fugir disso como o diabo da cruz, são as despesas de operação, dos requisitos de manutenção e as dores de cabeça dos serviços de apoio ao cliente.

Assim sendo, se nem a Google, nem os seus compatriotas conseguem substituir essa última secção, o que podem fazer? Podem torná-lo o mais próximo possível dos seus clientes, invadindo o mercado dos dispositivos (o Android). Podem dar o toque aos titulares para contruírem alternativas nalguns mercados (o Google Fiber). E podem incentivar reguladores a controlar práticas discriminatórias cometidas pelos operadores de rede (a neutralidade de rede).

O que sabemos do serviço da Google é que este vai ser uma operador virtual móvel (MVNO), o que significa que a Google vai alugar um pouco da capacidade das operadoras estabelecidas (a Sprint e a T-Mobile). Vai alterar ininterruptamente as ligações móveis de 3G e 4G e os hotspots de WiFi. Quase todos os telemóveis hoje em dia conseguem alterar a sua ligação móvel para WiFi, todavia, uma nova geração de serviços de nicho como a Republic Wireless, invertem a relação. A ligação principal é a WiFi, mas sempre que necessário, pode-se voltar à ligação móvel. A vantagem nisto? Uma ligação mais barata, uma fiabilidade melhor e a prevenção de ligações móveis congestionadas.

A Google tem alguma capacidade para fazer este primeiro modelo WiFi ir para a frente. Tem a alavancagem financeira necessária para negociar com agregadores como a Boingo e os operadores de cabos que controlam mais de 10 milhões de pontos de acesso WiFi. Tem os dados e a analítica suficiente para otimizar a qualidade do serviço. Pode fazer mais transferências ininterruptas pois controla o sistema operativo telefónico. Pode apoiar o avanço do desenvolvimento de novas tecnologias e abordagens sem fios, tais como os espaços em branco, as radiocomunicações cognitivas e os balões (Project Loon), que suplementam e potencialmente substituem o WiFi. Pode até fazer uma otimização detalhada entre as classes de aplicações: a transmissão de vídeo seria numa única ligação; os emails e textos são comparados com outros. Tudo isto significa que o serviço da Google vai ser, numa fase inicial, limitado aos dispositivos Nexus 6, mas tal não significa que não possa expandir para mais, caso a validação do conceito seja bem-sucedida.

A Google sempre disse que não pretendia criar um grande negócio de operadoras. Mesmo quando lançaram a Google Fiber, os seus executivos afirmaram que as iniciativas eram mais para competir em termos de banda-larga e de criação de uma nova plataforma para experimentar estes serviços. Estão a dizer o mesmo em relação a este novo serviço sem fios. Acho que estão a ser sinceros. Devem estar a preparar algo ainda maior.

Se todos os transmissores sem fios do mundo se tornarem entradas para um dispositivo inteligente atualizado para a nuvem, os custos diminuem e as oportunidades para a inovação aumentam proporcionalmente. Não é preciso que seja a Google a rentabilizar e a atribuir escalões à rede sem fios como se fosse um serviço. Outras empresas poderiam fazer o mesmo; a Google só precisa de provar o modelo e garantir que o seu mecanismo de fazer dinheiro de publicidade de pesquisa está apta para a coisa.

A rede sem fios é, em muitos aspetos, o próximo nível da Internet, e também muito maior que a Internet. Estamos a falar de cinco mil milhões de telemóveis e tablets em todo o mundo, e dez vezes mais dispositivos não pessoais ligados. Os computadores pessoais em casa e nos escritórios, que costumavam suportar toda a Internet, são agora uma consideração secundária quando comparados com estes números. E os dispositivos sem fios podem fazer coisas que nenhum pc se pode dar ao luxo de fazer: controlar a sua localização, controlar o seu esforço físico, pagar serviços do mundo real, tirar fotografias, filmar, aumentar a realidade, criar uma bolha contínua de redes sociais e de comunicações à sua volta ao longo do dia… e aí por diante.

A “Uberização” do sem fios significa controlar mudanças-chave desde a operadora de rede ao telemóvel. As ligações de redes móveis não se tornam necessariamente num “pobre conjunto depurado de drivers de dispositivos”, mas as operadoras sem fios estão a tornar-se naquilo que mais temem: uma rede não inteligente. São pagas pelo incómodo, talvez até sejam muito bem pagas, mas não têm controlo sobre o seu destino. As operadoras vão ser iguais aos condutores da Uber: necessários e recompensados até ao momento em que surjam mais condutores ou, por fim, carros com condutor automático que os tornem dispensáveis.

O modelo da Google só funciona se houverem mais operadores sem fios nacionais dispostos a vender-lhes toda a sua capacidade. Felizmente, e muito graças à aplicação da legislação por parte da administração Obama, temos quatro operadoras sem fios principais nos E.U.A. e não duas. Adivinhem quais são as que apoiam a indústria virtual móvel?

Qualquer conversa sobre o Uber invariavelmente descrevem a “interrupção” do negócio dos táxis autorizados. A inovação ininterrupta, baseada na dissertação do professor Clay Christiansen da Harvard Business School é um conceito forte, no entanto não descreve totalmente o que se está a passar neste caso.

A Uber não está a levar a indústria dos táxis para o próximo nível na mesma maneira que as fábricas e os produtores de unidades de disco de Christiansen estão. A Uber de São Francisco já produz mais que o triplo do rendimento anual de toda a indústria dos táxis na cidade. Contudo, tal não garante que o seu valor ou escala vão ter um aumento bem-sucedido, ou que vão ultrapassar os seus desafios jurídicos, ou mesmo derrotar ameaças concorrentes. Apenas significa que a empresa está a fazer alguma coisa consideravelmente mais radical do que o número de apreciações que recebe. Um “controlo remoto para boleias de carros” é uma ideia muito melhor do que um “serviço de táxis melhorado”.

O mesmo acontece com o sem fios. Apesar de ser divertido ponderar sobre o que a grande experiência sem fios da Google pode significar para as operadoras de rede, não é essa a questão. O sucesso da Google pouco tem a ver com a derrota da AT&T e da Verizon, embora essas empresas sejam o maior impedimento para o mundo que a Google tenciona criar. A Internet das Coisas não industrial, que é o assunto que se está a abordar aqui, representa uma oportunidade financeira de biliões de dólares, um grande inquantificável no potencial impacto que pode ter nas nossas vidas.

O sem fios é o impulsionador para um mundo no qual os objetos físicos também são fontes de dados e marcos para a coordenação de sistemas de rede. Quanto mais aberto e interligado for esse mundo, maior será o aumento de valor, inovação e de número de humanos a utilizá-lo. Só para ter a certeza, o registo da Google em relação a sua abertura tem-se revelado um pouco misto (especialmente nos últimos anos), contudo, é muito mais confortável do que no ambiente “fora de controlo” das operadoras. O seu serviço sem fios é a pequena tecnologia de ponta que pode mudar tudo.

Um potencial impacto nada mau para uma pequenina experiência.