O bizarro mundo das partes do corpo feitas por impressão 3D
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Há startups americanas a trabalhar na impressão de mamilos e tecidos de fígados, e um cientista russo diz ser já capaz de imprimir tiroides. Qual será o limite da impressão 3D aplicada à medicina?

Laura Bosworth quer imprimir mamilos femininos completos a 3D sob demanda. A diretora executiva da startup com origem no Texas, TeVido Biodevices está a apostar num futuro no qual os sobreviventes de cancro da mama que se submeteram a mastectomia sejam capazes de encomendar mamilos novos, impressos a partir das suas próprias células vivas.

"Todos," diz ela, "conhecemos uma mulher que teve cancro da mama." Neste momento, as suas opções são limitadas. Mamilos reconstruídos usando técnicas de cirurgia plástica de última geração, diz ela, "tendem a alisar e desvanecer e a não durar muito tempo." Um mamilo vivo, construído a partir das células de gordura do próprio paciente, e reconstruído para a especificação exata do mamilo original, poderia ser um grande passo para melhorar o trauma psicológico frequentemente associado com mastectomias.

Bosworth prontamente reconhece que existem obstáculos significativos que devem ser superados antes que partes mamárias a 3D possam ser uma realidade acessível. Apesar das ondas de campanhas publicitárias que surgiram após Anthony Atala, um professor de Wake Forest, ter espantado uma multidão no TED em 2011 por supostamente imprimir um rim humano no palco, ninguém usou ainda uma impressora a 3D para criar um órgão humano funcional.

A ciência é apenas metade da batalha. Os capitalistas de risco não estão exatamentea mandar as portas abaixo da TeVido. É muito mais fácil, observa Bosworth, angariar dinheiro "para um aplicativo que lhe permite chamar um táxi" do que para um avanço em biomedicina, que vai custar milhões de dólares em P&D, antes de iniciar o longo processo de ensaios clínicos necessários para trazer um produto para o mercado.

No entanto, Bosworth está convencida de que um mercado de $6 mil milhões aguarda quem lá conseguir chegar primeiro. "O tema em si tem crescido tremendamente", diz o co-fundador da TeVido, Thomas Boland, um dos primeiros cientistas a começar a modificar impressoras normais a 3D para imprimirem camadas de células vivas em vez de tinta. Os investigadores que estão longe, na China e na Rússia e Suíça, os laboratórios da Ivy League e no centro biotécnico de San Diego, estão todos a empurrar a bioimpressão para a frente. As disciplinas da ciência material, biologia celular e fabricação controlada por computador estão todas a unir-se.

Se acreditarmos em tudo o que temos ouvido recentemente, estaríamos a imprimir a 3D a nossa comida, os nossos carros, as nossas casas, os nosso sistema eletrônico –raios, toda a estrutura do comércio globalizado será interrompido quando estivermos a imprimir tudo o que precisamos a 3D desde as nossas salas de estar em vez de termos que mandar vir tudo o que precisamos por contentores da China.

As possibilidades parecem quase infinitas, mesmo se na realidade atual estão limitadas.

Apesar desta retórica parecer muito exagerada, os reinos da ficção científica e da fria, dura e fatual bioimpressão juntaram-se uma vez na vida real, nesta reunião estranha de mentes um construtor de mamilos, um pioneiro na fabricação de tecido e um (possivelmente) futurista russo louco. Naquela breve convergência podemos vislumbrar as visões grandiosas que os cientistas cautelosos tendem a manter para si. O absurdo mistura-se com o normal. E somos recordados a lembrar a coisa mais surpreendente de todas: hoje estamos a falar, em tons de negócio fatual, sobre a impressão de partes reais do corpo humano.

Agora, de volta aos mamilos

Em 2000, Thomas Boland era um professor assistente na Universidade de Clemson, Carolina do Sul, quando ele primeiro pensou em modificar uma impressora a jato de tinta padrão da HP para colocar camadas de células em cima da outra, o que lhe valeu a alcunha de "o avô da bioimpressão." Ele é agora o diretor do programa de engenharia biomédica na Universidade do Texas, El Paso. Em 2010, Bosworth, um executivo aposentado que trabalhou anteriormente na Dell Computadores, reuniu-se com Boland através de um programa de tutoria que combinava cientistas com mentes empreendedoras na universidade com os veteranos de negócios.

"Quanto mais eu aprendia sobre o potencial para esta tecnologia, mais eu pensava que isto era uma coisa incrível," lembra Bosworth. "Eu disse a Thomas, um dia, ‘nós devíamos começar uma empresa,’ e ele disse que o íamos fazer. "

É fácil entender o fascínio de Bosworth. A tecnologia de bioimpressão a 3D é ao mesmo tempo relativamente simples de descrever e totalmente surpreendente. Em vez de estruir múltiplas camadas de plástico ou alguma outra composição para criar um objeto físico inanimado, uma bioimpressora imprime uma "biotinta" de células vivas. Tipicamente, as camadas de diferentes tipos de células são misturadas com camadas de uma "matriz extracelular" – um gel no qual as células são suspensas.

O tecido impresso a 3D é construído numa placa de Petri (logo após a impressão). Foto fornecida pela Universidade de Iowa

Os biólogos celulares têm estado a cultivar células e a tentar fabricar estruturas maiores ao longo de décadas. As vantagens entregues pela impressão a 3D, diz Boland, estão em sua precisão, flexibilidade e velocidade. Diferentes tipos de células podem ser colocados em localizações específicas muito mais rapidamente do que se podia conseguir à mão. A velocidade é essencial, porque quanto mais lento o processo de montagem, mais provável é as células morrerem. A utilização de várias cabeças de impressão que contêm soluções de diferentes tipos de células e géis, estruturas extraordinariamente complicadas podem ser construídas em curtos períodos de tempo.

Colocar células em posição rapidamente é apenas o começo. Descobrir como mantê-las vivas é amplamente reconhecido como o maior obstáculo que os cientistas vão enfrentar para alcançar o santo graal da construção de órgãos totalmente funcionais que podem ser transplantados em corpos humanos.

Nos órgãos do seu corpo, as células são mantidas vivas por nutrientes fornecidos por redes de veias e capilares – a sua vascularização. O rim impresso por Anthony Atala no TED, embora tivesse a forma de um rim humano, não tinha essa rede de apoio.

"A incorporação da microcirculação na construção impressa," diz Boland, "tem-se revelado muito difícil. "

Ninguém, neste momento, pode dizer com autoridade quando e como o problema da vascularização será resolvido. No Instituto Wyss de Harvard, por exemplo, uma equipa liderada por Jennifer Lewis ganhou bastante atenção devido a um processo em que uma rede de ramificação de tubos é impressa através da matriz extracelular utilizando uma biotinta com uma propriedade muito especial – quando arrefece, derrete. Após a construção de tecido completo ser impressa, completa com células vivas e matriz extracelular e um filamento de tubos ramificados, a equipa de Lewis arrefece tudo e suga a biotinta derretida, deixando para trás uma rede vazia de tubos que, teoricamente, pode ser utilizada para canalizar nutrientes para as células.

Boland, que agora trabalha como conselheiro para a TeVido, diz que o seu laboratório em El Paso tem estado a fazer experiências ao imprimir "canais" de células epiteliais, as células que revestem as paredes dos vasos sanguíneos. O objetivo é ver se as células podem ser induzidas a se auto-organizarem em estruturas funcionais, embora Scott Collins, o diretor de tecnologia da TeVido, ao mencionar aspetos das propriedades intelectuais, se tenha recusado a entrar em mais detalhes.

“Em termos de produtos, já fabricámos órgãos? Não,” diz Boland. “Mas estamos cada vez mais perto.” Collins ainda diz: "o nosso objetivo é ser o primeiro."

Concorrência de Moscovo

O maior problema a bloquear a TeVido de obter a terra prometida, disse Collins, não é a ciência mas o financiamento. Até agora tem estado a economizar graças a vários subsídios governamentais. Em janeiro a TeVido até tomou a medida sem precedente de levar a cabo uma campanha de angariação de fundos pela Indiegogo, na qual a empresa angariou os $30,000 que tinha referido que necessitava para registar as suas patentes.

A ideia da reconstrução dos seios a partir de células vivas é, obviamente, emocionante. A realidade – o financiamento por parte de uma multidão de dezenas de milhares de dólares para registar patentes, a longo prazo desde o laboratório para o ensaio clínico até ao corpo humano – é um pouco mais mundana. É muito mais difícil construir novas partes do corpo do que codificar uma nova aplicação de telemóvel.

Mas numa era em que a mudança tecnológica induzida por feitiçaria de hardware e software de computadores é omnipresentemente louvada como instantaneamente disruptiva, a distinção entre a ideia incrível e o lento progresso científico por vezes perde-se. Na verdade, podemos argumentar que ao longo dos últimos anos, o domínio da tecnologia de impressão a 3D é onde esta distinção ficou mais confusa.

Vladimir Mironov, Diretor Científico do Laboratório de Pesquisa de Biotecnologia. Fotografia oferecida por 3D Bioprinting Solutions

No passado novembro, uma reportagem de noticiário no Russia Today levou a um estremecimento de entusiasmo por todos os blogs e páginas de tecnologia que abrangem a bioimpressão. Os cientistas num laboratório em Moscovo chamado 3D Bioprinting Solutions anunciaram que seriam capazes de imprimir uma glândula da tireoide de um rato até março de 2015. Ainda melhor, declarou o diretor do laboratório, Vladimir Mironov, até 2018 o laboratório começaria a imprimir rins totalmente transplantáveis.

“A pessoa que primeiro imprimir e depois transplantar com sucesso um rim a um paciente — que fique vivo —irá certamente ganhar um prêmio Nobel,” disse Mironov.

Mironov provavelmente não estava enganado na sua previsão de que o primeiro que seja bem-sucedido com bioimpressões de um rim humano ativo será vangloriado por todo o mundo. Não importam os benefícios psicológicos do aperfeiçoamento das técnicas de reconstrução mamária; a necessidade de obtermos mais rins é um caso urgente de vida ou morte. Só nos EUA há mais de 100.000 pessoas em lista de espera para um transplante de rim neste preciso momento – mas ocorreram apenas 17.000 transplantes durante todo o ano de 2013. A bioimpressão bem-sucedida de rins humanos salvará milhares de vidas.

Normalmente não considero a Russia Today uma fonte fiável de notícias, mas estava muito curioso. Queria saber, por exemplo, como Mironov tencionava resolver o problema da vascularização? Os meus esforços para o contactar, no entanto, falharam.

As minhas tentativas de o pesquisar no Google, por outro lado, foram muito divertidas.

Para começar, em 2011 Mironov escreveu um artigo para The Futurist em que previa estar em breve a imprimir seres humanos inteiros.

Não é difícil prever que mudar o corpo humano acabará por ser tão rotineiro como mudar de roupa. A cirurgia plástica irá fundir-se com a moda.

"A tecnologia de impressão humana iria acabar com a necessidade de esperar 18 anos para ter um adulto totalmente desenvolvido: Os seres humanos poderiam, teoricamente, ser impressos sob procura e estarem funcionalmente operacionais em dias ou semanas. O cérebro poderia ser substituído por biochips, embora a investigação do cérebro tivesse que progredir até um nível em que os cérebros pudessem ser desenvolvidos e fabricados de modo reverso."

A frase “a cirurgia plástica irá fundir-se com a moda” contém algumas nuances que se poderiam aplicar a mamilos e seios bioimpressos. Mas a noção que a bioimpressão completa seres humanos mediante pedido em dias ou semanas? Parafraseando Thomas Boland, tal tarefa irá provavelmente revelar-se muito difícil.

Alexander Mitryashkin, um engenheiro do Laboratório de Pesquisa de Biotecnologia. Fotografia oferecida por 3D Bioprinting Solutions

Mas o caso complica-se. Em 2003, enquanto trabalhava como pesquisador na Universidade de Medicina da Carolina do Sul, Mironov foi coautor de um artigo que delineava as expetativas do uso de impressoras a 3D para fabricar tecidos humanos. Um dos outros coautores do artigo não era nada mais nada menos que Boland! Um terceiro autor, Gabor Forgacs, um biofísico da Universidade de Missouri, acabou por cofundar uma empresa chamada Organovo que se tornou pública com êxito e agora está a bioimprimir pequenas amostras de tecido hepático humano para fins de testar medicamentos farmacêuticos. O nome de Mironov está sobre uma patente para a engenharia de tecidos que é atualmente propriedade de Organovo.

Vários anos após ajudar a inaugurar a era da bioimpressão com o seu artigo de 2003, Mironov obteu um pequeno grau de notoriedade pop-cultural (e uma comparência no Colbert Report) pelo seu trabalho num projeto financiado pela PETA para criar carne in-vitro, também conhecida por "schmeat." O objetivo de Mironov: é apenas assegurar a existência de uma futura fonte de alimento sustentável para a humanidade.

Em 2011, Mironov estava prestes a tornar-se no diretor de um laboratório de biofabricação de Tecido Avançado de $20 milhões em MUSC. Mas em fevereiro de 2011, ele foi subitamente suspenso e o seu laboratório fechado por razões que permanecem desconhecidas, mas que aparentam estar relacionadas com alguns conflitos interpessoais graves. Um reitor da universidade disse apenas que Mironov se tinha envolvido num "comportamento inaceitável."Mironov disse à Nature que "a minha pesquisa está bloqueada. Eles dizem que sou instável. Tornou-se surrealista."

Após 2011 o caminho de Mironov tornou-se mais obscuro. Ele parece ter passado algum tempo a pesquisar no Brasil enquanto escrevia artigos visionários para o Futurista, antes de surgir com a sua nova empresa e laboratório em Moscovo.

Revendo: um único pesquisador de carne sintética financiado pela PETA que acredita que estaremos eventualmente a bioimprimir seres humanos completos com cérebros biochipados está agora a trabalhar arduamente utilizando impressoras a 3D para fabricar glândulas da tireoide de ratos na Rússia. Este não é o enredo do próximo romance de Thomas Pynchon. Esta é a realidade dura e fria.

Mesmo assim, ao rastrear os cofundadores das startups pelos coautores de 2003 de Mironov, acabei por aprender sobre de TeVido e Organovo, empresas genuínas a empregar verdadeiros cientistas para fazerem coisas concretas. No mundo da bioimpressão, a linha entre a ficção-científica e pesquisa reapreciada pelos pares é muito, muito fina.

Organovo

O Organovo, diz Michael Renard, vice-presidente executivo de operações comerciais, é “de longe o líder” na comercialização dos produtos da tecnologia de bioimpressão.

Originalmente fundada com a intenção de fabricar bioimpressoras para venda a outros, Organovo decidiu eventualmente, após discussões com os investidores e empresas farmacêuticas, que seria melhor fazer e implantar a sua tecnologia no negócio de teste de fármacos, disse Renard. Em novembro, Organovo anunciou o lançamento comercial da impressão a 3D de "Tecido Hepático Humano para testes pré-clínicos de descoberta de fármacos."

Secção transversal de tecido hepático bioimpresso humano. Imagem oferecida pela Organovo

As amostras de tecido do fígado produzidas pela Organovo estão muito longe de fígados totalmente funcionais. São minúsculas fatias de tecido, de três milímetros de comprimento e de largura e um milímetro de altura, e com a garantia de sobreviver apenas durante 40 dias. Não incorporam estruturas vasculares funcionais. Mas resolvem, em teoria, um grande problema para as empresas farmacêuticas – a incapacidade de testar fármacos em tecido humano vivo sem a necessidade de antecipadamente passar por um processo de aprovação demorado e dispendioso do FDA.

Isto pode não soar tão atraente como imprimir um rim ou mesmo um mamilo, mas as implicações a longo prazo, se funcionar, podem ser significativas. O processo geral de descoberta e desenvolvimento de medicamentos pode ser acelerado bastante ao testar fármacos em tecidos artificialmente fabricados. O processo moralmente questionável de fazer testes em animais poderia ser evitado por completo! E se a empresa de testes de drogas gerar rendimentos suficientes, a Organovo pode ser capaz de expandir as suas capacidades de meros bocados de tecido para estruturas mais complexas.

"Nós provámos o conceito, e fizemos dele uma realidade," disse Renard. "O desafio é continuar a passar pelo processo de desenvolvimento, e construir tecidos para além do fígado – rim, pulmão, pele."

Renard recusou-se a comentar as alegações de Mironov para o sucesso da bioimpressão iminente na Rússia. Mas há claramente uma ligação a traçar entre as alegações loucas da excêntrica Schmeat e o visionário de biochips-para-cérebros e da ciência mais prosaica a ser feita em El Paso e San Diego.

A própria noção de que em 2015 estaremos a imprimir tecido humano de todo é de loucos. E talvez, só talvez, o facto de que a impressão de órgãos acaba por ser mais difícil do que alguns dos primeiros evangelistas apontaram torna a história mais interessante, não menos. A velocidade com que o software pode criar novos mundos – novas aplicações, jogos, plataformas, armas impressas a 3D! – por vezes cria a impressão de que podemos trabalhar com truques de magia igualmente velozes no muito mais complicado e emaranhado mundo da biologia.

Mas ao analisarmos o que está a acontecer em laboratórios por todo o mundo, parece óbvio que a fusão de ciência material, tecnologias digitais e biologia celular acabará por criar maravilhas que farão todos os nossos truques de software parecer brincadeira de criança. Mesmo estando um mamilo bioimpresso a uma década – ou duas – de distância, a perturbação que está por vir parece quase impossível de compreender.

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